sexta-feira, 16 de julho de 2010

História

UMA HISTÓRIA DOS DIABOS

Venerados e temidos, vestidos de frades ou visíveis em toda a sua diabólica e indecente aparência, queimados e renascidos das cinzas, objecto de culto e excomungados, vendidos e comprados, fechados em escuras arrecadações ou expostos em Londres e Paris, desprezados e recebidos em festa pela população... Eis uma história dos diabos. A história de umas esculturas em madeira representando um casal de demónios às quais os habitantes de Amarante vêm prestando, desde há séculos, uma especial atenção e carinho. Não vá o diabo tecê-las...

“De bem com Deus e com o Diabo” – eis uma máxima que o espírito pragmático das gentes do Norte de Portugal correntemente utilizou ao longo dos tempos. Alguma atenção ao demo, para que este “os não impeça”, foi sempre frequente, sendo disso exemplo as ofertas que se fazem à representação do demónio na capela de S. João d’Arga (Serra d’Arga, Caminha) ou diversas manifestações que ocorrem em diferentes locais a 24 de Agosto, dia em que segundo a tradição “o diabo anda à solta”. Dificilmente, no entanto, encontraremos caso mais paradigmático do que o do casal de “diabos” de Amarante – umas esculturas em madeira que não só permaneceram no interior da afamada igreja de S. Gonçalo durante imensos anos, como eram objecto de oferendas e de práticas muito pouco canónicas.
E era exactamente a 24 de Agosto, numa tradição hoje completamente esquecida em Amarante, que os “diabos” eram mais procurados. Nesse dia, quase feriado na vila, entre diversas manifestações e festas, os “diabos” eram objecto de particular atenção e multiplicavam-se-lhes as ofertas.
As origens do “diabo” e da “diaba” são obscuras e perdem-se no tempo. Um estudo recente de Carlos Teixeira defende a hipótese, no mínimo sedutora, de que aquelas imagens, com características sexuais fortemente vincadas, fossem originalmente indianas e estivessem relacionadas com cultos de fertilidade dos brâmanes. A sua aparição em Amarante estaria relacionada com os contactos que os portugueses estabeleceram com aquelas regiões desde o século XVI, tendo sido presumivelmente pela mão de um comerciante do Porto, ou mesmo de Amarante, que estas fantásticas imagens aqui terão chegado, sendo interpretadas como simpáticas figuras diabólicas, à volta das quais se desenvolverá toda a tradição que lhes ficou associada.
A história destes mafarricos amarantinos não é feita, porém, apenas de festas e sucessos. Prova disso é que o diabólico casal que hoje se pode observar não é o original, mas sim uma nova versão concebida nos inícios do século XIX para substituir os iniciais que haviam sido queimados pelos franceses.
Com efeito, na sequência das Invasões Francesas, Amarante foi palco em 1809 de um heróico episódio da resistência portuguesa quando, durante 14 dias, a povoação impediu o avanço de uma força napoleónica. Dirigidos pelo general Silveira, os guerrilheiros amarantinos barricaram-se à entrada da ponte, na margem esquerda, impossibilitando assim a avançada francesa. A factura, no entanto, foi bastante cara. Na margem direita o exército invasor pilhava, destruía e incendiava toda a povoação. E o casal de diabos não escapou. Até porque, dentro do mais genuíno espírito anticlerical que caracterizava as tropas de Napoleão, as igrejas e os símbolos religiosos dos portugueses eram alvos prioritários nos saques e destruições.
O desaparecimento dos diabos originais teve, porém, contornos especiais e serviu como uma clara represália e medida provocatória junto da população dada a resistência que esta oferecia. Retirados da igreja do Mosteiro de S. Gonçalo onde se encontravam, os diabos foram vestidos pelos franceses com as roupas dos frades e assim exibidos, em procissão, pelas ruas da vila. Finalmente foram queimados.
Mas qual “Fénix”, também os “diabos de Amarante” renasceram das cinzas. Pouco tempo depois das invasões, por suposta encomenda dos frades do Mosteiro, novo casal demoníaco é concebido e esculpido em madeira pelo mestre entalhador António Ferreira Carvalho, com oficina junto à fonte de Seixedo, que por tal motivo ficou conhecido por “Ferreira dos Diabos”.
Colocados novamente na igreja, mais precisamente na sacristia, coube-lhes, no entanto, a “penitência” de servirem de suporte à Cruz e à umbela do convento. E aí permaneceram durante várias décadas, atraindo a atenção dos curiosos e a continuação das oferendas pois “mal nunca fez estar de bem até com os diabos”.
Em 1870, contudo, o diabo e a diaba voltariam a passar um mau bocado. Classificados como diabólicos e indecentes pelo Arcebispo de Braga, indignos de partilharem o mesmo espaço com os santos, foram expulsos da sacristia pelas autoridades eclesiásticas de Amarante. Pena apesar de tudo relativamente leve se tivermos em conta que, por vontade do Arcebispo, eles teriam sido queimados.
Arrumados e escondidos durante alguns anos numa arrecadação da Câmara, acabaram, apesar de alguns protestos, por ser vendidos por três libras cada um a um inglês do Porto: Mister Alberto Sandeman. Viajaram então até Londres onde, comodamente instalados num palácio, eram exibidos como curiosos exemplares da superstição lusitana. Mas não se ficaram pela capital inglesa. Em 1889, por exemplo, acompanhando os vinhos do Porto da firma do seu novo proprietário, o casal diabólico é exibido na Exposição Internacional de Paris. Mas o exílio não demoraria muito mais...
Em 1910 os demónios são gratuitamente devolvidos a Amarante. Da grande festa que então se realizou, para registar o regresso dos “bons filhos” à terra natal, deixou Teixeira de Pascoaes um belíssimo texto do qual não resistimos a citar: “Lá vêm eles! Lá vêm eles! E vem a câmara municipal e a banda musical. Foram esperá-los à estação ferroviária, como sinal de alegria pelo regresso das maléficas Potestades (...). São de tamanho natural (se a medida humana é a mesma dos demónios) e ambos de madeira preta, é claro. Madeira? Para os olhos das crianças e dos populares é carne autêntica, dessa que veste os esqueletos (...). O Diabo, natural da África do outro mundo, tem um busto Negro e grossos beiços vermelhos ou incandescentes de ironia. A Diaba é também uma Negra da Guiné subterrânea, com duas tetas enormes, pontiagudas, donde saiu a Via-Láctea (...) atrai longa fila de pequenos diabos ou diabretes, que seguem atrás dos dois andores. São todos os garotos da vila diabolicamente mascarados. Deitam lume pela boca, ostentam chifres retorcidos, na testa, arrebitam a cauda petulante (...). Saltam, berram, bufam relâmpagos, fazem trejeitos dum cómico fabuloso, em que surge, esboçada no ar, a inocente caricatura do Mal.”

Contudo, não obstante terem sido recebidos como heróis, como se mantinha a ordem de expulsão da sacristia o casal de mafarricos não pôde voltar para a igreja. Mas ficou muito próximo: em pleno Convento de S. Gonçalo que, com a extinção das ordens religiosas na primeira metade do século XIX, passou a albergar uma série de serviços maioritariamente afectos ao município. Entre eles, e desde 1947, o Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso onde os diabos passaram a figurar como testemunhas privilegiadas e curiosas dos usos e tradições locais. E uma referência obrigatória da Memória Colectiva de Amarante porque, como deixou bem expresso Teixeira de Pascoaes: “Lá vêm eles! Lá vêm eles! São ele e ela, em dois andores, transportados aos ombros de altos dignatários da Treva. Assim vão os Santos nas procissões, que um demónio é um santo às avessas, negro em vez de branco, temido em vez de amado, um santo para baixo até às Profundas.”

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